Antes de adentrar no tema do texto a seguir gostaria de fazer
duas coisas:
1. Me desculpar com todos os membros de minha família e
explicar que não se trata de negação, rejeição e menos ainda de menosprezo a
quaisquer de nossos antepassados de quem herdamos nossos nomes que nos unem.
2. Dizer que, caso algum dos meus conhecidos tenha um dos
nomes ou cujo nome se enquadre nos parâmetros que citarei a seguir, que espero
que saibam contextualizar e compreender minhas palavras e não considerarem como
algum tipo de ataque pessoal.
FALTA UM NOME NO MEU SOBRENOME!
Recentemente, um desses aplicativos bobinhos do facebook
me fez repensar em um assunto com o qual, vira e mexe, eu me deparo e que eu
sempre vejo uma série de declarações pautadas pelo lugar-comum, mesmo entre
algumas pessoas que considero bastante inteligentes, que têm por objetivo
invalidar uma questão que toda diretamente na identidade de uma imensa parcela
da população brasileira, aliás, americana. Gostaria de salientarque eu sei
muito bem diferenciar um discurso de invalidação de uma real contestação e
também de dúvidas reais.
Este aplicativo tenta adivinhar (na verdade, não passa de
uma brincadeirinha com aleatoriedades, eu sei disso) a “descendência”(sic) das
pessoas. Nem vou comentar sobre o usso errado do termo “descendência” neste
caso, pois já tratei disso há algum tempo. O tal aplicativo me dava
antepassados até na Austrália, mas em nenhuma das vezes que tentei apareceu que
eu teria em meu DNA algum ancestral africano. Ora, eu sei também que não passa
de uma brincadeirinha sem compromisso nenhum com a realidade, mas uma coisa me
chama a atenção sempre que este assunto surge, inclusive em conversas menos
descontraídas: boa parte das pessoas ainda tenta negar o direito do outro se
declarar firmemente AFRODESCENDENTE.
As razões dessa negação não variam muito, sempre pendem
para o lado das alegações de “ditadura do politicamente correto”, de “vitimização”,
de “não se pode culpar agora as pessoas por erros passados da humanidade”... e
muitas vezes quem deveria ter argumentos de defesa de uma ideia também acaba
sucumbindo à tentação do uso repetitivo de palavras de ordem e bordões.
Pois farei agora duas afirmações, em caixa alta:
EU SOU UM AFRODESCENTENTE SUL-AMERICANO e, por causa disto, FALTA UM NOME NO MEU SOBRENOME.
EU SOU UM AFRODESCENTENTE SUL-AMERICANO e, por causa disto, FALTA UM NOME NO MEU SOBRENOME.
É isso que muita gente, mesmo os “bem intencionados”, não
percebe. Muitos desses já disseram, com orgulho, em algum momento na vida: “sou
descendente de espanhóis”, “minha avó é italiana”, “tenho sobrenome polonês”;
algumas vezes demonstrando até um bom conhecimento da história de seus
ascendentes: “meu bisavô era um exímio sapateiro em Coimbra” ou “somos yonsei
de uma tradicional família de lavradores”. Ok. Eu não tenho nenhum motívo, o
menor que seja, para contestar alguém conhecer e afirmar suas ancestralidades,
mas vou te contar uma coisinha sobre uns bons dois terços da minha árvore
genealógica e também da de outros milhões de brasileiros): EU NÃO SEI A MINHA.
E vou dizer o porquê de eu não saber: NÃO ME FOI PERMITIDO SABER.
Quando escravizaram e trouxeram os africanos para cá em
navios do mesmo modo como fazem os caminhões clandestinos que transportam aves
das granjas para os abatedouros, tiraram-lhes seus nomes, suas nações, suas
profissões. Eram apenas “um negro forte”, “uma negra robusta”, “um negrinho
rápido”. Eu não sei se meus ancestrais foram um agricultor do Congo ou uma
sacerdotisa da Nigéria. Também não sei se tenho em minhas origens o sangue dos
tapuias ou dos tamoios. Eu sei o meu Borges. Eu sei o meu Alves. Eu posso até
ir mais longe e saber sobre os Tavares ou os Lopes ou Silva. Talvez, dessa
herança, eu possa, um dia, pegar uma lata de azeite de graça no supermercado.
Mas é só isso e isso é só uma parte, ainda que ornada de
bandeiras e brasões. Uma parte de três, eu diria. O que eu vou falar sobre as
outras duas? O que eu vou falar sobre a maior parte das três? Nada me resta
além de dizer “SOU UM AFRODESCENDENTE”, e direi isso com todas as letras e
todas as nações que couberem nessa palavra. E peço... não. Eu EXIJO que levem
isso em consideração toda vez que evocarem os seus sobrenomes de consoantes
dobradas e semivogais de pronúncia complexa. Lembrem-se seus ícones midiáticos
e seus patrões que atendem por “Ksyvickis”,
“Michaelichen”, “Meneghel”, “Gentilli”, “Salles”, “Villela”,
“Civita” e outros tantos. Lembrem-se deles e do orgulho que eles têm e que
vocês também têm em portarem o nome de seus antepassados por tantas gerações e
a possibilidade de fazer esses nomes permanecerem por tantas outras. E apenas
não ouse, nem em pensamento, dizer que há uma “ditadura do politicamente
correto” ou que há uma “opressão” por se fazer questão de afirmar suas raízes.
E faça uma boa autoavaliação antes de tentar responder que “desse jeito todo
mundo é afrodescendente”. Se você pensa assim, eu sinto muito. Você ainda não
entendeu nada. E espero, sinceramente, que um dia possa aprender.
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