quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

FALTA UM NOME NO MEU SOBRENOME

Antes de adentrar no tema do texto a seguir gostaria de fazer duas coisas:
1. Me desculpar com todos os membros de minha família e explicar que não se trata de negação, rejeição e menos ainda de menosprezo a quaisquer de nossos antepassados de quem herdamos nossos nomes que nos unem.
2. Dizer que, caso algum dos meus conhecidos tenha um dos nomes ou cujo nome se enquadre nos parâmetros que citarei a seguir, que espero que saibam contextualizar e compreender minhas palavras e não considerarem como algum tipo de ataque pessoal.

FALTA UM NOME NO MEU SOBRENOME!

Recentemente, um desses aplicativos bobinhos do facebook me fez repensar em um assunto com o qual, vira e mexe, eu me deparo e que eu sempre vejo uma série de declarações pautadas pelo lugar-comum, mesmo entre algumas pessoas que considero bastante inteligentes, que têm por objetivo invalidar uma questão que toda diretamente na identidade de uma imensa parcela da população brasileira, aliás, americana. Gostaria de salientarque eu sei muito bem diferenciar um discurso de invalidação de uma real contestação e também de dúvidas reais.

Este aplicativo tenta adivinhar (na verdade, não passa de uma brincadeirinha com aleatoriedades, eu sei disso) a “descendência”(sic) das pessoas. Nem vou comentar sobre o usso errado do termo “descendência” neste caso, pois já tratei disso há algum tempo. O tal aplicativo me dava antepassados até na Austrália, mas em nenhuma das vezes que tentei apareceu que eu teria em meu DNA algum ancestral africano. Ora, eu sei também que não passa de uma brincadeirinha sem compromisso nenhum com a realidade, mas uma coisa me chama a atenção sempre que este assunto surge, inclusive em conversas menos descontraídas: boa parte das pessoas ainda tenta negar o direito do outro se declarar firmemente AFRODESCENDENTE.

As razões dessa negação não variam muito, sempre pendem para o lado das alegações de “ditadura do politicamente correto”, de “vitimização”, de “não se pode culpar agora as pessoas por erros passados da humanidade”... e muitas vezes quem deveria ter argumentos de defesa de uma ideia também acaba sucumbindo à tentação do uso repetitivo de palavras de ordem e bordões.

Pois farei agora duas afirmações, em caixa alta:

EU SOU UM AFRODESCENTENTE SUL-AMERICANO e, por causa disto, FALTA UM NOME NO MEU SOBRENOME.

É isso que muita gente, mesmo os “bem intencionados”, não percebe. Muitos desses já disseram, com orgulho, em algum momento na vida: “sou descendente de espanhóis”, “minha avó é italiana”, “tenho sobrenome polonês”; algumas vezes demonstrando até um bom conhecimento da história de seus ascendentes: “meu bisavô era um exímio sapateiro em Coimbra” ou “somos yonsei de uma tradicional família de lavradores”. Ok. Eu não tenho nenhum motívo, o menor que seja, para contestar alguém conhecer e afirmar suas ancestralidades, mas vou te contar uma coisinha sobre uns bons dois terços da minha árvore genealógica e também da de outros milhões de brasileiros): EU NÃO SEI A MINHA. E vou dizer o porquê de eu não saber: NÃO ME FOI PERMITIDO SABER.

Quando escravizaram e trouxeram os africanos para cá em navios do mesmo modo como fazem os caminhões clandestinos que transportam aves das granjas para os abatedouros, tiraram-lhes seus nomes, suas nações, suas profissões. Eram apenas “um negro forte”, “uma negra robusta”, “um negrinho rápido”. Eu não sei se meus ancestrais foram um agricultor do Congo ou uma sacerdotisa da Nigéria. Também não sei se tenho em minhas origens o sangue dos tapuias ou dos tamoios. Eu sei o meu Borges. Eu sei o meu Alves. Eu posso até ir mais longe e saber sobre os Tavares ou os Lopes ou Silva. Talvez, dessa herança, eu possa, um dia, pegar uma lata de azeite de graça no supermercado.


Mas é só isso e isso é só uma parte, ainda que ornada de bandeiras e brasões. Uma parte de três, eu diria. O que eu vou falar sobre as outras duas? O que eu vou falar sobre a maior parte das três? Nada me resta além de dizer “SOU UM AFRODESCENDENTE”, e direi isso com todas as letras e todas as nações que couberem nessa palavra. E peço... não. Eu EXIJO que levem isso em consideração toda vez que evocarem os seus sobrenomes de consoantes dobradas e semivogais de pronúncia complexa. Lembrem-se seus ícones midiáticos e seus patrões que atendem por “Ksyvickis”, “Michaelichen”, “Meneghel”, “Gentilli”, “Salles”, “Villela”, “Civita” e outros tantos. Lembrem-se deles e do orgulho que eles têm e que vocês também têm em portarem o nome de seus antepassados por tantas gerações e a possibilidade de fazer esses nomes permanecerem por tantas outras. E apenas não ouse, nem em pensamento, dizer que há uma “ditadura do politicamente correto” ou que há uma “opressão” por se fazer questão de afirmar suas raízes. E faça uma boa autoavaliação antes de tentar responder que “desse jeito todo mundo é afrodescendente”. Se você pensa assim, eu sinto muito. Você ainda não entendeu nada. E espero, sinceramente, que um dia possa aprender.

DISCURSO INDIRETO

Fui falar sobre você e não soube como te adjetivar.

Eu poderia dizer “amiga”, mas você sempre foi (nós sempre fomos) vários passos além disso e eu nunca te chamei assim.

As outras palavras e expressões que indicam o que eu sentia (sinto) ou o que nós tínhamos igualmente nunca foram aplicáveis e tampouco usadas por nós.

Para me referir a você, direta ou indiretamente, teu nome sempre bastou.

Fui falar sobre você e não soube.

E calei teu nome e o assunto.