Certos
clichês que os poetas já nem mais usam são resguardados somente ainda nas
pobres rimas pobres das canções populares, que dependem delas de modo quase
escravizado pelo ritmo, pela melodia, tudo isso que exige uma métrica e que se
impõe, e é justamente essa escravização dependente dessa pobreza limitadora que
torna a expressividade dessas canções muito direta, e é essa diretividade que
atinge de modo certeiro os seus ouvintes, de modo ainda mais contundente que os
poemas ditos mais elaborados aos seus leitores, autoproclamados mais capazes.
Tudo
isto dito, devo revelar que não farei um poema nem comporei uma canção, apenas
usarei uma velha e gasta rima para iniciar meu texto, que tratará não apenas
das aproximações sonoras dessas palavras.
“Teu
cheiro no meu travesseiro”. Toda vez que olho para ele me ocorre essa frase.
Acho terrível. Parece trecho de uma daquelas músicas cafonas de dor de cotovelo
que meu pai gosta de ouvir ou, ainda pior, algum sertanejo dessas duplas cujo cantor
principal parece estar sempre disposto a explodir seus próprios pulmões ou
gargantas e, consequentemente, o meu ouvido. Mas enfim, a frase me é
inevitável, ela já vem pronta. E o travesseiro é teu, ele apenas mora aqui, com
a muito cruel tarefa que eu tinha como minha e que transferi para ele, que é te
esperar. E ele é um encarregado muito melhor do que eu a cumprir tal função.
Ele fica lá, calado em sua natureza de coisa inanimada, não sabedor nem mesmo
de sua destinação natural, que é simplesmente servir de apoio para a cabeça
durante o sono. E eu aqui o tornando uma espécie de guardião de minhas poucas
memórias e parcas esperanças e nenhum sonho.
Eu
só o vejo quando abro aquela parte do armário destinada às coisas que não são
tão cotidianas, mas ele está lá, não exatamente ao alcance da minha vista, mas
eu o busco. Já aprendi a só tirá-lo de lá em caso de quase certeza. Estou
tentando eliminar o “quase”. Acho que é por saber que, neste dia, ele não sairá
de lá nunca mais. Antes eu o sacava mais inadvertidamente, o posicionava onde
eu achava que ele deveria estar, o que seria o seu lugar real, e tentava buscar
o efeito da frase que sempre me vinha e me vem. Fazer dele minha proustiana madeleine,
evocar memórias por aromas, mas a verdade é que nunca tive algum sucesso nisto.
O
que é teu cheiro? É o teu xampu? É o teu perfume? É o teu suor? É a mistura
deles? Seja lá qual for, se forem todos, ele não está lá. Quantas vezes seria
preciso para que ele se fixasse? Ou seria o hábito? De todo modo, eu sabia que
não foram vezes suficientes, mas ainda arriscava e culpava meu falho olfato
pelos insucessos. Sei que não era. Conheço teus cheiros e a memória deles. Teus
cheiros e teus sabores. Gosto deles em você, gosto de senti-los em você, mas
longe se tornam rarefeitos, ainda que eu tentasse preservá-los na proteção
plástica que serviria originalmente para mantê-lo livre de poeira. Mais uma vez
inverto a função dos incautos objetos. O que protegeria contra o que poderia
estar fora agora é carcereiro do que deveria estar dentro.
Teu
travesseiro, que só é teu por eu tê-lo feito assim. Que não é meu, apesar de
minha posse dele, mas que jamais deixarei de tê-lo. Tão teu quanto as minhas
memórias de você.
Ele
está lá. Diferente de mim, ele está mudo, guardado, protegido. Diferente de mim
ele ainda espera, espera para mim que sei que já não mais me é dado esperar. E
um dia ele perderá a rima e seu cheiro será um cheiro que eu já conheço e
reconhecerei bem e que me é familiar e habitual: o cheiro das coisas há muito
guardadas sem uso em um canto de armário.
Mas
ainda guardará alguma poesia e(m) suas penas.
Um comentário:
Cheiro.
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