terça-feira, 30 de julho de 2013

PENITÊNCIA


Quem cumpre pena não precisa de catarse.

A arte não lhe serve de expurgo. Não há poesia que o redima. A ele, a poesia e a tragédia servem apenas como alento e memória.

Sua redenção se dá pelo perdão. Nenhum verso se iguala a dor que ele causou e sente. As canções sempre lhe serão menores que a vida.

Que a catarse artística sirva para os puros de alma. Quem tem o inferno em si carece é de paz.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

DO MELHOR PARA ALGUÉM

“Que isso? Eu só coloquei a primeira roupa que vi quando abri o armário!” e lá está ela: saia combinando graciosamente com o bolero rendado, brincos e outros acessórios harmoniosamente afins, um batom que realça vivamente o sorriso que ela sabe que você tanto gosta nela. Claro, tudo obra do mero acaso que previamente dispôs cada elemento como primeiro ao se abrirem as portas do guarda-roupa.

Ele também deixou que o destino escolhesse aquelas meias que caem bem com a camisa, o habitual desalinho nas dobras da calça jeans fazendo uma ponte com as dobras das mangas da camisa... Interessante como esse tal acaso se faz funcionar.

Ambos se encontram, igualmente “sem querer”, apenas uma entre tantas possibilidades. Decidem ir para a casa de um dos dois (de qual, é a vez de um decidir, o destino não pode dar conta de tudo, afinal), aproveitar a oportunidade de estarem um tanto mais juntos, pois não se sabe quando ocorrerá de novo, mesmo que os dois tenham os mesmos compromissos semanais no mesmo local e no mesmo horário. Ao se chegar em casa, o anfitrião se coloca um pouco mais à vontade, se valendo de seus privilégios (a “prerrogativa do capitão”) e estabelecendo o domínio do lugar, mas por que desfazer todo o minucioso preparo do destino? Melhor não. Assim, o “ficar à vontade” resume-se a desabotoar o colarinho ou trocar o salto alto por uma sandália.

Nisto, ocorre a chance de apresentar dotes. Os culinários sempre serão muito bem vindos. Então a pessoa se prepara para cozinhar para a outra. Nada do desleixo habitual de “ah, vai essa faca mesmo” ou panelas barulhando como baterista de rock afinando seu instrumento. Tudo feito com zelo e estudo, mas a providência também dá suas caras neste momento ao lembrar que existe o avental, peça tão cotidianamente  esquecida, mas que ressurge em momentos pontuais como este.

O final desta noite, creio que nós já prevemos: o destino, o acaso, a providência cuidaram para que tudo se dê como deveria se dar e podemos deixar os dois realmente à vontade.

Manhã seguinte, ela se vai, ele a acompanha. Na volta, ele torna a combinar com o aleatório as melhores vias para que tudo se dê novamente. E deixa tudo preparado para ser usado sem escolha. Sem querer. O disco de jazz “esquecido” no aparelho, o vinho especial que foi comprado só porque ouviu falar... Até o avental lavado e pendurado no varal pronto a ser reutilizado, caso a ventura o queira.

Mas nem todo destino se prevê e o ser humano pode se ver refém de imprevistos.

Chove. Chove torrencialmente. E lá está o avental pegando chuva no varal, irreversivelmente molhado como planos que não ficarão secos a tempo.

Ele nunca gostou de chuva, mas _estando com ela_ esta lhe passava a ser muito menos mal vista, pois ela gosta de chuva. Isto pode ser usado “por acaso” também.

_Oi. Que chuva, né? Quer uma carona?

quarta-feira, 17 de julho de 2013

DIVISA

(de Aava Santiago)

A Alan Robert 

Teus olhos que são muito mais que dois
Ou três, ou seis, ou milhares de olhos:

São teus dedos e tuas notas que veem,
teu cabelo que vê, teu blue que vê
Teu francês que vê, tua amargura que vê,
Tua doçura que tudo vê.

Em ti tudo que é visto demora-se
Como demoradas são as memórias de remorso
E a espera por um Redentor.

Por isso teu tempo é outro
Onde os dias são contados somente pelo teu cigarro
Por tua descrença e pelos lamentos da imensa cegueira
Que teus tantos olhos coagem
Pela força da tua precisão.